Ambientado numa região fronteiriça entre Brasil e Argentina, filme acompanha a jovem Tamara em busca de si em um ambiente hostil e sem esperanças
As longas tomadas de cenas, contemplativas, marcam, com frequência, o cinema latino-americano. Com elas, é possível dar mais subjetividade à narrativa e, por muitas vezes, fazer o espectador mergulhar no universo particular do personagem. E não é diferente com “Como Matar a Besta”, coprodução de Brasil, Argentina e Chile, que estreou nesta quinta-feira (28) nos cinemas.
Dirigido pela argentina Agustina San Martín, premiada em Cannes no ano de 2019, com seu curta “Monstruoso Dios”, o filme foi exibido em diversos festivais, entre eles, Toronto e Festival do Rio. A narrativa transita o tempo todo entre o onírico e o real, muitas vezes, sem deixar muito determinado onde termina um e começa o outro. Um recurso bem interessante, partindo do ponto de vista que a história gira em torno de dualidades.
“Como Matar a Besta” tem Emilia (a estreante Tamara Rocca), uma jovem de 17 anos, como protagonista. Ela chega a uma típica cidade do interior, fronteiriça, e com fortes traços religiosos. Ela deixou a comodidade de viver em uma capital (Buenos Aires), para buscar o irmão desaparecido e tentar resolver questões pendentes. Aliás, o pouco menos de duas décadas de vida de Tamara têm sido para resolver seus problemas e dúvidas internas, sempre permeados por medo. Medo que ela faz questão de frisar no decorrer da história.
Longe de ser um terror, como se propõe a princípio, “Como Matar a Besta” se parece muito mais com um drama envolto em fantasia, misturando elementos folclóricos argentinos e brasileiros. Aliás, essa mistura se manifesta constantemente, através das dualidades. Os personagens não são ideias fechadas. Seus sentimentos transitam entre dúvida e certeza, medo e coragem, alegria e tristeza, quando não se misturam. A cidade, por sinal, vive isso também: o confronto, principalmente, entre o tradicional e o moderno, o real e o imaginário.
Há algumas questões mal resolvidas na narrativa, como personagens que vão e vêm sem função clara. De repente, o papel deles seja apenas servir de ponte para os acontecimentos. Mas o roteiro e a direção não deixam isso claro e nem direcionam para a função real deles.
E a besta? Ela, aparentemente, nunca aparece. E, pra ser sincero, não há necessidade. A possibilidade de sua existência assusta mais do que sua aparição. O medo de encontra-la fala mais sobre crenças e o desconhecido do que se a consubstanciassem. E, na prática, o roteiro deixa para quem assiste fazer sua própria interpretação.
O irmão de Tamara está presente mais na imaginação de Tamara e na voz gravada da secretária eletrônica. Seu sumiço e o “surgimento” da besta se confundem, deixando novamente para o espectador as conclusões e um horizonte de metáforas. Contudo, mesmo sem presença física, ele vive no corpo e na alma de Tamara, como um censor de sua vida. Ela o procura e o reprime ao mesmo tempo. E será no envolvimento com uma hóspede da pousada de sua tia que Tamara, enfim, exorcizará a relação tóxica com Matteo. Hóspede essa que também vem de fora. E aqui, a diretora evoca a irreverência, que sempre é externa ao conservador, como mecanismo libertador.
“Como Matar a Besta” funciona para levantar questões em quem sai da sala de projeção. Mas não evolui os personagens da forma merecida, avançando lentamente e sem propor caminhos. Embora flerte, em certa medida, com o cinema de David Lynch, não o utiliza de forma assertiva, deixando brechas onde poderíamos ter finais abertos.
Por outro lado, a experiência estética é importante e interessante para ampliar horizontes cinematográficos. As interpretações são intimistas e promete agradar quem quer fugir de um modo de fazer cinema mais padronizado.