“Carro Rei” é projeto cinematográfico brasileiro ousado, mas escorrega em diálogos forçados

Discurso político sobre meio ambiente e tecnologia se destaca na obra de Renata Pinheiro, com uma espécie de Herbie controverso e vingativo

Nos anos 1960, Herbie, protagonista de “Se Meu Fusca Falasse”, fez o maior sucesso por ser um carro com inteligência e sentimentos. No entanto, o carro vivia suas aventuras em corridas e estava longe de ser politicamente ativo. Diferente de Herbie, o “Carro Rei”, sua versão brasileira, dirigida por Renata Pinheiro, e em cartaz no Brasil, tem uma outra configuração: é instigador, faz discurso político e envolve as mulheres de forma empática e sexual.

Grande vencedor do Festival de Gramado 2021, conquistando os Kikitos de Melhor Filme, Melhor Direção de Arte, Melhor Som, Melhor Trilha Sonora, e também do Prêmio Especial do Júri para a atuação de Matheus Nachtergaele, “Carro Rei” chega ao circuito comercial neste mês de julho de 2022.

Com passagem por 30 festivais nacionais e internacionais, o filme lida com o fantástico e o bizarro com um pé na realidade. Constantemente, a narrativa apresenta o conflito entre tecnologia e natureza, evidenciando o que muitas vezes acontece no dia a dia, sem espaço para meio-termo. Na história de “Carro Rei”, ser adepto da tecnologia significa destruir a natureza e ser ligado ao meio ambiente é ter aversão à máquina. Nesse cenário desenhado, de extremos, esboça-se o mundo vive de dualidades do século XXI.

O jovem Uno, interpretado por Luciano Pedro Jr, nome dado pelos seus pais em homenagem ao carro em que ele nasceu a caminho da maternidade, tem o dom de se comunicar com automóveis. Na infância, ele e o carro da família são grandes amigos – até que uma tragédia muda tudo. Uma década depois, Uno, aos 19 anos, tem aversão a automóveis e não quer trabalhar na empresa de táxis da família. É um ciclista apaixonado por natureza e ingressa na faculdade de Agroecologia.

Mas quando uma nova lei na cidade de Caruaru, onde é ambientada a história, tira de circulação os carros com mais de 15 anos de uso, Uno recorre ao velho amigo, abandonado em um ferro-velho, para salvar a família. A partir daí, o antigo carro se torna o “Carro Rei” e monta um plano miraculoso para dominar os humanos (pelo menos, os da região).

Entre um plano e outro, ele mostra que sua inteligência artificial vai muito além de falar ou ter sentimentos básicos. Carro Rei instila feromônios mais do que muitos humanos. Prova disso é quando seduz Mercedes, personagem de Jules Elting, e faz amor com ela em tomadas que lembram muito o excelente francês Titane. Detalhe para como a edição e os efeitos visuais são muito bem utilizados na ambientação da cena.

A sequência em que Carro Rei toca o Hino Brasileiro é sintomática e cheia de discurso. Aliás, o filme é político do começo ao fim. Não falo de partidarismo, mas de discurso engajado.

Há que se destacar aqui a atuação visceral de Matheus Nachtergaele, que interpreta o tio de Uno, Zé Macaco, porta-voz e braço direito do “Carro Rei”. O nome do personagem de Nachtergaele é, por assim dizer, uma grande metáfora, por referenciar o rudimentar a serviço do moderno. Sua linguagem corporal também diz muito, evoluindo ao longo da narrativa, mantendo trejeitos rústicos aliados a falas modernas.

Mesmo com tantas qualidades, “Carro Rei” peca nos diálogos. Em primeiro lugar, porque parecem teatrais demais, forçados. Principalmente nas falas de cunho mais político, os personagens parecem estar lendo um texto no papel e não interpretando. São falas com contexto para a narrativa, mas inverossímeis. Em segundo lugar, se alguns diálogos são autoexplicativos demais em outros longas, aqui em “Carro Rei”, falta explicação para muita coisa. Os artefatos criados para comunicação com os carros, por exemplo. Nem a explicação fantástica existe. Eles, simplesmente, surgem, e assim são.

Como o filme tem pouco mais de 90 minutos, alguns detalhes de produção e de roteiro acabam sendo deixados em segundo plano. Mesmo assim, isso não tira a ousadia e a experimentação de “Carro Rei” em investir mais em aspectos técnicos do que tantos outros filmes brasileiros, calcados exclusivamente no argumento.

Cabe ao longa de Renata Pinheiro, ser um caminho aberto para que o cinema de ficção científica no Brasil avance cada vez mais e produza boas peças para o público que vai aos cinemas.

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